Anoiteceu


É dia de lua cheia.
Dia de entregar-se à sagrada invenção de Baco
E banhar-se na lascívia de violões sob os pés da rainha das águas.

É dia de lua cheia.
Dia de alumiar-se acalentado pela aprazível brisa do mar
E embalar-se em sono de fazer criança ao ritmo das ondas eternas.

É dia de lua cheia.
Dia de se divertir contando estrelas distraídas
E de despetalar suavemente flores e ramos de bem-me-quer.

É dia de lua cheia.
Dia de viajar sem pressa por entre beijos e seios
E de fazer de curvas e lábios desejados aconchegos da retidão.

É dia de lua cheia.
Dia de adormecer recitando gemidos de amor e poesia
E de desabrochar sonhos na realidade de corpos entrelaçados.

Era dia de lua cheia.
Era.

Num gozo a dois, clareou.

Orfão de Arraia


Sonhos navegam no azul de céus desestrelados
Como que se quisessem, num mergulho, penetrar nuvens
e volatizar realidades.

- Ô moço! Meu carretel é pequeno, não chega às nuvens.
- Mas menino! Espere, espere que um dia as nuvens descem
em forma de gotas.
- Ô moço! Mas se chover minha arraia não voa.
- Ah menino! E quem disse que arraias e realidades foram feitas para voar?

Em meio a buzinas e crianças
Arraias se cortam e se perdem sob fios de alta tensão.

Mais um sonho muda de dono...

Preciso


Precisando do seu
Sigo eu, amando
E precisando o meu.

Preciso amor.
Amor, preciso.

"Era uma vez"


Arrodeada por brinquedos e desejos
Pensava ela, com os olhos clorofilados de silêncio:

O que será de minha venerada singularidade
Sendo eu menina e mulher ao mesmo tempo?

Pinga


Pinga, esparrama
E chora.
Paz e ciência descem pelo gargalo da vida.

Cristal vira cristais
Vidro, vidros
E pessoas, ausência
Como se tudo, assustado com tudo
Disfarçasse a aparência para se proteger de realidades.

É dia de dia
Dia sem segundos, sem minutos, sem horas.
É só mais um dia.
Dia que precipita, mas não molha
Que só embebeda, não alivia.

Pinga, esparrama
E chora.
Paciência sobe com o raiar do dia.

Tudo, até nós, exceto o amor
Um dia evapora.

(espero não precisar mais escrevê-la)

Poesia de Ventre


Espalmando a vida
Arromanceio as palmas
De cada mão
Desvendando, assim
Que do encontro delas
Com o ventre de minha mãe
Nasceram versos
Disfarçados de linhas.

Enlace


Ao ritmo de palmas
E sapateados
Cuícas, suspiros
E cantigas obscenas
Se achegue minha neguinha
Do jeito que só você sabe
Pra vaguear com seu camote
Ao som de bangulê.

Deposto


Em fração de um instante
Aviso-lhe, ó tempo rei
Que logo se aquiete
Sob pena de
Debaixo de tuzina
E cantarejando meus versos
Dourar-lhe a pele
Até que vossa excelência
Tropeçando em ponteiros
E desvanecido de fado
Desista do passamento.

Perigo


Se essa tela fosse
"Amômetro"
E eu a soprasse
Com a mesma intensidade
Que a cama me consome
Ia ser tanto sentimento
Transbordando por aí
Que seu teclado iria ficar
Da cor de meus olhos
Caídos de sono.

Sonho de Primavera


Banhava-se
Com facho de luz
E fios d'água
Como se da rosa do ateneu
Fosse a mais femeal
Das pétalas
Entreverando em mim
No desabrochar do sol
E regressar da lua
Sonho e realidade
De um azulejado
Despertar.