Hodierna


É difusa, é segredo,
É desejo, é querela.
É menina, é presente,
É futuro, é janela.

És passagem, és desamor,
És pretérito?

Já era.

É difusa, é segredo,
É desejo, é querela.
É menina, é presente,
É futuro, é janela.

És você, és lamento,
És passado?

Já era.

Feiras


... rezou o terço da meia-noite, pediu licença aos bichos
E foi dormir acobertado pelo piso pisado de sexta-feira pagã.

Um copo de aguardente aliviado por pingos d'chuva tropical
Assassinava seus sonhos de infância perdida,
Reconstruindo, num gole d'alma esquecida
A fuga de uma sina definida desde a manjedoura de papelão.

Mas clareou. A estrela matutina revelava a escuridão da tua vida.

Despertado pelo desenrolar de portas enferrujadas
E pela sirene de sobras da noite passada,
Catou seus pertences, entornou o resto da bebida abençoada
E foi simbora guiado pelo vermelho das sinaleiras.

Era só mais um dia d'fé para ele. Era.
Sábados e domingos nunca lhe fizeram diferença.

Sobrenome


Vem, vem sem medo
De enrubescer minha face
Com seu frêmito de sensualidade
Intimidada pela luz.

Vem, vem sem receio de enfrentar-se
Em meus olhos rasgados
Descerrando de seus lábios
Murmúrios emudecidos pela polidez.

Vem, vem se desvelar
Com os desejos de minha generosidade
Que nem sua tênue maioridade
Seria capaz de desencaminhar.

Vem, vem se encorajar
Em derredor de meus braços
Descompassando cios, fios e laços

De tuas esquinas em frenesi.

Mas vem, vem antes
Que o tempo adensado de nós
Abdique de nossos sufrágios
Diferidos pela decência conveniente.

E chegue, chegue mesmo
Sem medo e sem horizontes
Porque tudo, além das palavras
Eu lhe ofereço de sobra e à exaustão.

Chão


Face cálida,
Poeira
E sofrimento.

Vida alimentada de cimento...

Resumindo


Risco,
Rascunho
E rabisco.

Não escrevo, arrisco.

Conto de Gente


(...)

Não sabia ela, contudo, que essa gente
Era gente de verdade, gente mangada
Que nem povo governado por favores
E que fazia das mangas duma rede de pescar
Bordas dum prato raro de comida disputada.

Era gente praga, enfim, gente que acossada à exaustão
Pela tempestade intempestiva de negações de porta,
Recolhia as velas de sua morada sobre lágrimas
E danava a correr, a correr de mãos dadas com o tempo,
Buscando, assim, e só dessa forma mesmo

A estiagem exigida pelo prato do dia seguinte.

Três Reais


No rosto um sorriso afetuoso carregava.
Nas mãos, água e sabão, vosso pão de cada dia.

- Patrão! E esse grau?
- Patrão?

É verdade... ele estava certo.
Seus patrões eram os carros cobertos de sobras desse mundo vil.

Eram. Não são mais.
Na quinta-feira resolveram despedi-lo sem aviso prévio.

(in memoriam de "Robinho")