ESTRADA

* pintura: Tarsila do Amaral

Pus meus olhos na estrada e segui
vezeiro, era o mesmo e dela não hesitava em
reclamar.
Confiava-lhe, ao menos, fé
inabalável.
Havia, pois, de apreendê-la em forma de
sutilezas,
dominá-la feito luas sobre mar
e recrutá-la sorvendo todas as coisas boas que
de ti poderia absorver.
Sabia que nem toda porta seria porta; 
qualquer canto não seria mais qualquer canto e
até um cisco ao chão cantaria
o novo. 
O fato é que a falta do hoje transcorria em saudades;
em frente ao espelho, enxergava-me nu e cru:
cachoeira forte
redondilhas
Oxum.
Qualquer cão latindo não seria o mesmo cão e 
qualquer gente chamando seria qualquer gente chamando.
E só. 
Será que seria preciso me recompor ao todo, nota a nota, 
escala a escala, de sustenido a bemol?
Haveria de ter o novo, desafinado ou não, mesmo
que o novo fosse reverenciar a cada dia o velho de ontem?

Meu presente, sim, sempre tem me feito futuro e todos
os astros hão de clarear.
É o que dizem os anos, saudade antecipada
meu amor.
Mas em meio ao amor, o que seriam de trovões e
tempestades
raios descompassados pelo vento,
partituras de Orum?

Sei, ao certo, que não existe o que não existe e o que
existe insiste porque é feliz por existir; que toda estrada é
longa, por mais curta que nossa métrica cotidiana possa
metrificar; que todo amor só é amor se sublime a cada dia.

Vejo, enfim, ao largo, a estrada traspassando e eu caminhando
à sua margem. Penso nela.
Penso nela.
Ela existe sozinha. Traspassa. 
Eu tenho o meu amor.

4 comentários:

Guebo disse...

Que beleza!!!

Liu Lisboa disse...

Ainda estou provando, mastigando, lambendo, cheirando cada um desses versos, para saber que gosto têm. Já sei, contudo, que eu gosto.

Guebo disse...

Esse poema é fantástico. Saudades de vc e dos seus versos, man!

Rodrigo Barata disse...

Saudade de tu também, meu caro! Vez ou outra passo em teu blog para sorver seus versos.

Ah, falou de/por mim por lá:

"A poesia que me espera.

Minha cabeça vazia é pedinte
Por presenças e ares,
Cheiros, flores, ritmos e febres.

A poesia que espero.

Maços de cartas, jogos de búzios, telas
Confissões, purgatório: tudo
Palavras que não escrevo
Enquanto aguardo sonhos, nudezes
Ondas gigantes, ações revolucionárias".

Saravá!